segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Resistir à tendência herética. O relatório do Cardeal Erdö elimina com um só golpe o pecado e a lei natural.

Por Roberto de Mattei – Il Foglio, 15-10-2014 | Tradução: Fratres in Unum.com – Eliminado o sentido do pecado; abolidos os conceitos de bem e de mal; suprimida a lei natural; arquivada qualquer referência a valores positivos como virgindade e castidade. Com o relatório apresentado em 13 de outubro de 2014 no Sínodo sobre a família pelo Cardeal Péter Erdö, a revolução sexual irrompe oficialmente na Igreja, com consequências devastadoras para as almas e a sociedade.

Relatio post disceptationem elaborada pelo Cardeal Erdö é o relatório resumitivo da primeira semana de trabalhos do Sínodo e aquele que orienta as suas conclusões. A primeira parte do documento pretende impor, com uma linguagem derivada do pior ‘Sessenta e oito’ [NdT: Revolução anarquista da Sorbonne, de maio de 1968], a “mudança antropológico-cultural” da sociedade como um “desafio” para a Igreja. Diante de um quadro que da poligamia e do “casamento por etapas” africanos chega à “prática da convivência” da sociedade ocidental, o relatório encontra a existência de “um difuso desejo de família”. Nenhum elemento de avaliação moral está presente. À ameaça do individualismo e do egoísmo individualista o texto contrapõe o aspecto positivo da“relacionalidade”, considerada um bem em si, sobretudo quando tende a transformar-se em relação estável (nos. 9-10).
A Igreja renuncia a emitir juízos de valor para limitar-se a “dizer uma palavra de esperança e de sentido” (no. 11). Afirma-se em seguida um novo surpreendente princípio moral, a “lei da gradualidade”, que permite colher os elementos positivos em todas as situações até agora definidas como pecadoras pela Igreja. O mal e o pecado propriamente não existem. Existem apenas “formas imperfeitas de bem” (no. 18), segundo uma doutrina dos “graus de comunhão” atribuída ao Concílio Vaticano II. “Tornando-se portanto necessário um discernimento espiritual em relação às coabitações, aos matrimônios civis e aos divorciados recasados​​, compete à Igreja reconhecer que a semente do Verbo se espalhou além das fronteiras visíveis e sacramentais” (no. 20).
O problema dos divorciados recasados ​​é um pretexto para fazer passar um princípio que mina dois mil anos de moral e de fé católica. Após a Gaudium et Spes“a Igreja se volta com respeito para aqueles que participam em sua vida de modo incompleto e imperfeito, prezando mais os valores positivos que guardam, do que as limitações e as faltas” (ibidem). Isso significa que cai todo o tipo de condenação moral, porque qualquer pecado passa a constituir uma forma imperfeita de bem, um modo incompleto de participar na vida da Igreja. “Nesse sentido, uma nova dimensão da pastoral familiar hodierna consiste em entender a realidade dos casamentos civis e, feitas as devidas diferenças, também das coabitações” (no. 22).
E isso sobretudo “quando a união alcança uma notória estabilidade através de um vínculo público, e caracteriza-se por profunda afeição, de responsabilidade em relação à prole, da capacidade de resistir nas provas” (ibid). Com isso fica de cabeça para baixo a doutrina da Igreja segundo a qual a estabilização no pecado através do casamento civil constitui um pecado mais grave do que a união sexual ocasional e passageira, porque esta última permite com mais facilidade o retorno ao caminho certo. “Uma sensibilidade nova na pastoral hodierna consiste em entender a realidade positiva dos casamentos civis e, feitas as devidas diferenças, também das coabitações” (no. 36).
A nova pastoral impõe, portanto, o silêncio sobre o mal, renunciando à conversão do pecador e aceitando o status quo como irreversível. São estas que o relatório chama de “opções pastorais corajosas”(ponto 40). A coragem, ao que parece, não está em opor-se ao mal, mas em adaptar-se a ele. As passagens dedicadas ao acolhimento às pessoas homossexuais são as que pareceriam mais escandalosas, mas constituem a consequência lógica dos princípios acima expostos. Até o homem da rua compreende que se ao divorciado recasado é possível aproximar-se dos sacramentos, tudo é permitido, a começar pelo pseudo casamento homossexual.
Nunca, realmente nunca, sublinha Marco Politi no “Il Fatto” de 14 de outubro, ele tinha lido, em um documento oficial produzido pela hierarquia eclesiástica, uma frase do gênero: “As pessoas homossexuais têm dons e qualidades para oferecer à comunidade cristã.” Seguida de uma pergunta dirigida aos bispos do mundo inteiro: “estamos em condições de acolher essas pessoas, garantindo-lhes um espaço de fraternidade em nossas comunidades?” (no. 50). Embora não equiparando as uniões entre pessoas do mesmo sexo ao casamento entre homem e mulher, a Igreja se propõe “elaborar maneiras realistas de crescimento afetivo e de maturidade humana e evangélica integrando a dimensão sexual” (no. 51). “Sem negar os problemas morais conexos às uniões homossexuais, nota-se que há casos em que o suporte mútuo com vistas ao sacrifício constitui um apoio precioso para a vida dos parceiros” (no. 52).
Nenhuma objeção de princípio vem expressa em relação à adoção de crianças por duplas homossexuais: aqui limita-se a dizer que “a Igreja tem uma atenção especial para com as crianças que vivem com casais do mesmo sexo, insistindo que em primeiro lugar são colocados sempre as exigências e os direitos dos pequenos” (ibid). Na conferência de imprensa de apresentação, Mons. Bruno Forte chegou a auspiciar “uma codificação dos direitos que podem ser assegurados às pessoas que vivem em uniões homossexuais”.
As palavras fulminantes de São Paulo segundo as quais “nem os impuros, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os sodomitas, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os difamadores, nem os salteadores hão de herdar o reino de Deus” (I Carta aos Coríntios, 6, 9) ficam esvaziadas de sentido para os malabaristas da nova moralidade pansexual. Para eles é necessário entender a realidade positiva daquele que foi chamado de pecado que clama ao Céu por vingança (Catecismo de São Pio X). A “moral da proibição” deve ser substituída pela do diálogo e da misericórdia, e o slogan de 68, “é proibido proibir”, é atualizado pela fórmula pastoral segundo a qual “nada se pode condenar”.
Não caem apenas dois mandamentos, o sexto e o nono, que proíbem pensamentos e atos impuros fora do casamento, mas desaparece a ideia de uma ordem natural e divina objetiva sintetizada no Decálogo. Não existem atos intrinsecamente ilícitos, verdades e valores morais pelos quais se deve estar disposto a dar até a vida, como os define a encíclica Veritatis Splendor (no. 51 e no. 94). No banco dos réus não estão apenas a Veritatis Splendor e os recentes pronunciamentos da Congregação para a Doutrina da Fé em matéria de moralidade sexual, mas o próprio Concílio de Trento que formulou dogmaticamente a natureza dos sete sacramentos, a começar pela Eucaristia e pelo Matrimônio.
Tudo começa em outubro de 2013, quando o Papa Francisco, após ter anunciado a convocação dos dois sínodos sobre a família, o ordinário e o extraordinário, promove um “Questionário” dirigido aos bispos de todo o mundo. O uso enganoso de pesquisas e questionários é bem conhecido. A opinião pública julga que uma escolha é justa quando feita pela maioria das pessoas. E as sondagens atribuem a essa maioria, opiniões já predeterminadas pelos manipuladores do consenso. O questionário desejado pelo Papa Francisco abordou os temas mais prementes, da contracepção à comunhão aos divorciados, das uniões de fato aos casamentos entre homossexuais, mais com o objetivo de orientação que de informação.
A primeira resposta, publicada em 3 de fevereiro pela Conferência Episcopal alemã (“Il Regno Documenti”, 5 [2014], pp. 162-172), foi claramente anunciada para condicionar a preparação do Sínodo e sobretudo para oferecer ao cardeal Kasper a base sociológica de que precisava para a preleção ao Consistório que o Papa Francisco lhe havia confiado. O que de fato emergiu foi a recusa explícita dos católicos alemães “às pretensões da Igreja sobre as relações sexuais pré-maritais, a homossexualidade, os divorciados recasados ​​e o controle da natalidade” (p. 163). “As respostas recebidas das dioceses – dizia-se ainda – deixam entrever quão grande é a distância entre os batizados e a doutrina oficial, sobretudo no que diz respeito à convivência pré-matrimonial, ao controle de natalidade e à homossexualidade” (p. 172).
Esta distância não vinha apresentada como uma separação dos católicos em relação ao Magistério da Igreja, mas como uma incapacidade da Igreja em compreender e secundar o curso dos tempos. O cardeal Kasper, em sua exposição ao Consistório de 20 de fevereiro, definirá tal distância de um “abismo” que a Igreja deveria ter preenchido adaptando-se à prática da imoralidade. 
De acordo com um dos seguidores do cardeal Kasper, o sacerdote genovês João Cereti, conhecido por um estudo tendencioso sobre o divórcio na Igreja primitiva, o questionário foi promovido pelo Papa Francisco, a fim de evitar que o debate ocorresse “em ambientes confinados” (“Il Regno-Attualità” 6 [3014], p. 158). Mas se é verdade que o Papa desejava que a discussão se desenvolvesse de forma transparente, não se compreende a decisão de realizar o Consistório extraordinário de fevereiro e, em seguida, o Sínodo de outubro a portas fechadas. O único texto de que se teve conhecimento, graças ao “Foglio”, foi a exposição do Cardeal Kasper. Em seguida baixou o silêncio sobre os trabalhos.
Em seu Diário do Concílio, em 10 de novembro de 1962, o Padre Chenu anota estas palavras do padre Giuseppe Dossetti, um dos principais estrategistas da frente progressista: “A batalha eficaz se joga no regulamento. É sempre por esta via que eu ganhei”. Nas assembleias, o processo decisório não pertence à maioria, mas à minoria que controla o regulamento. Não existe democracia na sociedade política nem na religiosa. A democracia na Igreja, observou o filósofo Marcel De Corte, é cesarismo eclesiástico, o pior de todos os regimes. No processo sinodal em curso a existência deste cesarismo eclesiástico é demonstrada pela pesada atmosfera de censura que o acompanhou até hoje.
Os vaticanistas mais cuidadosos, como Sandro Magister e Marco Tosatti, sublinharam que, ao contrário dos Sínodos precedentes, neste foi proibido aos padres sinodais de intervir. Magister, recordando a distinção feita por Bento XVI entre o Vaticano II “real” e o “virtual” que se lhe sobrepôs, falou de uma “divisão entre sínodo real e sínodo virtual, este último construído pela mídia com a sistemática ênfase às coisas caras ao espírito do tempo”. Hoje, no entanto, são os próprios textos do Sínodo que se impõem com a sua força explosiva, sem a possibilidade de deturpações pelos meios de comunicação, que se têm mostrado até mesmo espantados com o poder explosivo do Relatório do cardeal Erdö.
Naturalmente este documento não tem qualquer valor magisterial. É também lícito duvidar que ele reflita o verdadeiro pensamento dos Padres sinodais. Contudo, a Relatio prenuncia a Relatio Synodi, o documento final da assembleia dos bispos.
O verdadeiro problema que agora se porá é o da resistência, anunciado no livro Permanere nella Verità di Cristo [Permanecer na Verdade de Cristo], dos cardeais Brandmüller, Burke, Caffarra, De Paolis e Müller (Cantagalli 2014). O cardeal Burke, em sua entrevista com Alessandro Gnocchi no “Foglio” de 14 de outubro, afirmou que eventuais mudanças na doutrina ou na prática da Igreja pelo Papa seriam inaceitáveis, “porque o Papa é o Vigário de Cristo na terra e, por conseguinte, o primeiro servo da verdade da fé. Conhecendo o ensinamento de Cristo, não vejo como se possa desviar daquele ensinamento com uma declaração doutrinária ou com uma prática pastoral que ignore a verdade”.
Os bispos e os cardeais, até mais do que os simples fiéis, encontram-se diante de um terrível drama da consciência, muito mais grave do que aquele que tiveram de enfrentar no século XVI os mártires ingleses. Com efeito, tratava-se então de desobedecer à suprema autoridade civil, o rei Henrique VIII, que por um divórcio abriu o cisma com a Igreja Romana, enquanto hoje a resistência é feita à suprema autoridade religiosa, caso ​​esta se desvie do ensinamento perene da Igreja.
E quem é chamado a resistir não são católicos desobedientes ou dissidentes, mas precisamente aqueles que mais profundamente veneram a instituição do Papado. Outrora, quem resistisse era entregue ao braço secular, que o destinava à decapitação ou ao esquartejamento. O braço secular contemporâneo aplica o linchamento moral, através da pressão psicológica exercida pela mídia sobre a opinião pública.
O resultado é muitas vezes o colapso físico e mental das vítimas, a crise de identidade, a perda da vocação e da fé, a menos que se seja capaz de exercitar, com o auxílio da graça, a virtude heroica da fortaleza. Resistir significa, em última análise, reafirmar a total coerência da própria vida com a Verdade imutável de Jesus Cristo, invertendo o argumento dos que hoje pretendem dissolver a eternidade do Verum na precariedade do quotidiano.

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