terça-feira, 20 de agosto de 2013

«Eu era ateu, estava no cárcere da KGB em Kiev, vi um facho de luz e então entendi tudo»



Pablo J. Ginés
Myroslav Marynovych hoje é vice-reitor da Universidade Católica da Ucrânia. No convulso panorama político ucraniano este não é na atualidade um cargo cômodo, mas alguém como ele, que passou 7 anos em campos de trabalho comunistas e outros três deportado ao Cazaquistão, não se intimida facilmente.
Inclusive, em parte, desejou isso por anos, porque a ele, que era ateu e cético, Deus se revelou no cárcere e no Gullag.
Neto de sacerdote, porém ateu
“Minha família era religiosa”, nos explica em um descanso durante o Encontro em Madri, a grande cidade de ‘Comunhão e Libertação’ na Espanha.
“Meu avô materno foi sacerdote greco-católico e minha mãe criou em casa uma atmosfera de fé simples e limpa, sem fanatismo algum. Ela desejava que eu fosse crente, mas não me pressionava.
Eu assumi o ceticismo ateu em minha juventude, mesmo mantendo respeito com as pessoas religiosas.Não sentia nenhuma necessidade de Deus, vivia bem sim Ele. Porém tinha claro que existia o bem e o mal e uns valores muito firmes, e o tema da gravidade moral sempre tive presente”.
Desta exigência moral chegou seu compromisso com a dissidência e os direitos humanos… o que lhe levaria ao cárcere.
“Sentia que os valores do comunismo eram muito elevados na teoria, mas depois na vida real sempre resultavam feiíssimos. Isso suscitou muitas perguntas em mim… e vi que tudo no sistema comunista era falso”, detalha.
“Tinha 20 anos e perder a auto-estima nessa idade pode deixar vazia toda tua vida. Tinha afinidade pessoal pelos perseguidos e um forte sentido de solidariedade para eles. O regime pedia total lealdade, não bastava que amasses pela metade. Na KGB me disseram bem claro: “se não estás conosco, estás contra nós”. Assim que lhes respondi: “valeu, pois estou contra vós”.
Os dissidentes do grupo de Helsinki
Foi fundador de ‘Helsinki Watch’ na Ucrânia. Em 1977 foi encarcerado e depois deportado. “Eram os anos 70, e o presidente Carter dos Estados Unidos tinha tirado o tema dos direitos humanos do âmbito filosófico e o estava levando à política internacional. Aquilo o acolhemos muitos com entusiasmo.
Em Helsinki, em 1965, os países da OSCE, incluindo a URSS, firmaram um compromisso que falava inclusive de liberdade religiosa e de livre circulação de idéias!
Na União Soviética criamos 5 grupos de “seguimento de Helsinki”. Em 1976 dez dissidentes ucranianos difundiram através de publicações do Ocidente e jornalistas ocidentais, as violações na Ucrânia contra o pacto de Helsinki.
Difundimos os nomes de poetas e escritores presos e pedimos que os libertassem. Não tínhamos ilusões: sabíamos que também nos prenderiam”.
E assim sucedeu: a policia secreta os buscou um a um e os deteve.
“A KGB nos sentenciou por, tecnicamente, difundir propaganda anti-soviética para minar a estabilidade do sistema´. Desses dez dissidentes, oito fomos encarcerados e dois foram expulsos.
Declararam-nos “criminosos muito perigosos”. Sentenciaram-me a 12 anos em campos de trabalho e exílio. Cumpria já 10 anos quando chegou a perestroika de Gorbachov. Não houve nem um dia em que me arrependesse do que tinha feito.
A situação na URSS necessitava de kamikazes, pessoas que se sacrificavam para evidenciar o totalitarismo do sistema. Os dissidentes, naquele país que não era livre, atuavam como pessoas livres! Aquilo chocava com tudo.
Facho místico na KGB
“Minha volta a Deus foi inesperada, não buscava. Em obras literárias tinha lido, antes de meu encarceramento, que Deus às vezes vem para prisioneiros como uma resposta ao seu desespero, inclusive como uma resposta intelectual, mas meu caso não foi assim”, especifica.
A narrativa de Marynovych, a partir deste momento, adquire uma lucidez brilhante, quase doentia, que alguém percebe nos escritos de Dostoiévski quando disseca a alma humana. O que no escritor russo encontramos como literatura, em Marynovych acontece na carne.
“Acabavam de me interrogar na KGB de Kiev, e me tinham devolvido à cela. Ia agitado de parede a parede, refletindo sobre várias questões intelectuais. Entre elas, pensava na unificação da humanidade, em como todos os homens poderiam estar unidos no espiritual.
E então, de repente, vi como um facho de luz. Durante três dias meu estado nessa prisão foi muito estranho: comia, bebia, me asseava, me barbeava…Mas não entendia, nem ouvia nem respondia ao que alguém me dissesse. Ao terceiro dia ouvi um repicar de sinos. E falei. Perguntei ao meu companheiro de cela: “O que é isso? São os sinos da igreja de São Vladimir de Kiev as que soam?”
Ele me disse: “Menos mal, por fim ouves”. Entendi então que fazia três dias que estava sem reagir diante de nada. Nesse momento senti como se se desenrolasse um rolo em meu interior, despregando muita informação, e de repente entendi muitas coisas bíblicas, momentos que conhecia isolados mas agora unia em uma nova cosmovisão.
Senti que já entendia isso, que já o via unido. Desde esse dia, fui outra pessoa, agora religiosa”.
Isso é proibido e uma voz: «reza!»
“Houve outro momento muito especial, que sucedeu dois anos depois, desta vez já no campo de trabalho. Tinha estado dois dias sem comer, em greve de fome reclamando meu direito de levar uma cruzinha.
Tinham arrancado a que tinha. Ao terceiro dia veio um oficial à minha cela e me disse: “de acordo, lhe devolverei sua cruzinha, mas depois de passar 15 dias na cela do castigo”. Para mim era uma grande vitória moral e voltei a comer”
(…) então ouvi uma voz potente, em ucraniano, minha língua natal: “Reza!”, disse essa voz. Estava tão fraco, ali deitado, que não podia nem usar as manos para persignar-me, mas me persignei mentalmente… e num instante recobrei as forças e pulei da cama de um salto, perplexo!
A fórmula se tinha apagado completamente de minha mente. Deu-me medo e me deixou a sensação de ter sabido algo proibido, e senti agradecimento porque se apagou”.
Desde então, a pergunta de que ‘Deus existe’, para mim, já não tem sentido, devido ao fato de que o senti tão forte. Hoje sei que sou um pecador, que deixo de cumprir muitas virtudes, mas precisamente sei que isso são transgressões.
Para mim é importante que o mundo em geral e a civilização européia em particular entenda que estão omitindo a busca da verdade, e que dizendo que querem proteger a liberdade, na realidade muitas vezes danam essa liberdade”.
Inglaterra hoje, como a URSS?
“Choca-me agora o caso da Inglaterra, onde os tribunais dizem que podem despedir a alguém por levar uma cruzinha ao pescoço”, continua este acadêmico.
“Eu, que no cárcere comunista defendi minha cruzinha e pensava no Ocidente como um lugar de tolerância. Em seu momento, a Ilustração lutou contra o monopólio da Igreja e lhe retirou certas funções que não lhe eram próprias, fazendo-lhe voltar à sua missão espiritual.
Mas agora a Igreja é quase perseguida no Ocidente e o monopólio do público concedeu-lhe cosmovisões anti-religiosas. Esse monopólio é tão daninho como o anterior”.
Marynovych admite certa nostalgia da prisão, mais concretamente, da espiritualidade daqueles dias no campo de trabalho.
“No gulag, não nos permitiam nenhuma prática religiosa, era proibido ter bíblia. Passei 15 dias de greve de fome para pedir que me deixassem ter uma bíblia. Não o consegui. Até nos censuravam as cartas que nos mandavam com versículos bíblicos.
O Espírito Santo circulava pela “prisão”. Como não tínhamos acesso ao culto litúrgico, uma pessoa religiosa se concentrava numa consciência profunda de Deus.
Não tinha comunidade cristã com a qual adorar, assim que a alma fazia do sofrimento cotidiano seu templo. Dar a outra face, amar os teus guardas desapiedados e cínicos… era nosso culto.
Não há melhor lugar para o sentimento cristão que esses campos de trabalho! Não tinha sacerdotes que te pudessem dar alento. Estavas a sós diante de Deus. Que dias benditos aqueles! Que bênção para os que passavam a provação com êxito!
Podia ver com novos olhos a promessa de Cristo: bem-aventurados os perseguidos! Saber que estavas condenado só pela verdade consagrava e enchia de significado cada dia na prisão. Era um apoio sublime, mas só ao sair da prisão o entendi. Aqui fora tens de justificar tua existência com obras”.
“Hoje vivo uma tensão entre a fé pura e os rituais. Na prisão não tinha vida ritual e minha fé era toda mística, espiritualidade. Aceito os rituais, a liturgia de minha tradição greco-católica.
Nos domingos vou à missa greco-católica. Mas houve uma época em que eu acusava minha mãe de ter uma religião com demasiado ritual.
Eu queria espiritualizar a minha mãe. Ela me disse: “conceda-me a possibilidade de crer à minha maneira, e não à tua”. Sua simplicidade me chocou e não mais pretendo impor minha visão aos demais”.
Cristãos, corrupção e consumismo
“Os valores culturais cristãos chocam com a sociedade ucraniana de hoje. Recordo que um estudante escreveu uma magnífica tese sobre a doutrina social da Igreja, com muito êxito.
Dois meses depois, o encontro na rua e me disse: “fui pedir trabalho em tal lugar e me disseram que se pagasse 2.000 dólares o lugar era meu”. Suborno! Choque de valores.
Muitos hoje perderam a fé e a esperança. Creem em Deus, mas vão à Igreja e dizem ao Senhor: “bom, já vistes, isto é assim, não posso mudar em nada”. Não têm esperança! Talvez antes, mesmo que houvesse mais pobreza econômica, tinha mais limpeza moral.
A Ucrânia não é pior nem melhor que outras nações, mas o que mais me dói é ver que não creem que a mudança é possível, que não creem que possam melhorar. Sem esta esperança nas pessoas, os políticos seguirão sendo todo-poderosos”.
“Na Universidade Católica olhamos com reserva para todas as ideologias. Somos acadêmicos, não tomamos partido. Mas o país está preso nessas ideologias.
Uns são de ideologia quase comunista; outros de um nacionalismo ideológico; outros, ideólogos liberais… e todos eles suspeitam de nós, da universidade católica, porque não somos dos seus. ]
“O sistema comunista mudou a moral absoluta cristã pela bolchevique, que dizia: “a moral é tudo aquilo que é útil para o proletariado”.
Ao cair o Muro e a União Soviética, nos encontramos com o dogma da moral pós-moderna que diz: “a moral é só o que é útil para mim”. Como universidade católica promovemos a restauração dos valores autênticos.
É uma provocação para muitos pós-comunistas que hoje têm cargos na administração pública e apoiam a desordem presente, que querem que a desordem dure sempre porque lhes beneficia. A universidade, por exemplo, é “zona livre de corrupção” num sistema quase totalmente corrupto.
É uma bênção do Senhor trabalhar num lugar onde se respeita a dignidade humana, mas em breve poderá precisar da solidariedade dos cristãos ocidentais para defender-nos de quem quiser nos intimidar”.

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