quinta-feira, 29 de agosto de 2013

«Camarada, ajude-me: meu filho, licenciado em Ateísmo Científico, quer entrar no seminário»

Andrey Kuraev nasceu em 1963 em Moscou. Sendo criança no princípio dos anos 70, “eu sonhava com o comunismo”, explica. “Eu me imaginava como uma grande tenda cheia de brinquedos onde cada um podia pegar grátis qualquer coisa, sem dinheiro e sem que os pais dissessem que não poderiam pegar”.
Os pais de Andrey não eram crentes. Tampouco eram especialmente militantes do ateísmo. Seu padre era filósofo e trabalhava na Academia de Ciências. O menino cresceu com gosto pela filosofia. No colégio foi redator de um jornal escolar chamado “O Ateu”. Na hora de escolher a carreira universitária, escolheu a licenciatura mais ideológica de todas: Teoria e História do Ateísmo Científico.
E ali, na licenciatura de ateísmo, pela primeira vez o jovem Kuraev teve contato com os textos reais do Evangelho.
Muita mentira e muita incompetência
Nos livros soviéticos, com seus comentários sobre a história do cristianismo, começou a ver que a crítica materialista não tinha consistência. “Logo me dei conta de que nesses livros havia muita mentira, muitas conjecturas e um sem fim da mais simples incompetência. Em minha época, nenhum dos professores conhecia o hebreu nem o grego, porém isso não lhes impedia de fazer um crítica científica da Bíblia. Isso me decepcionou muito”.
Dessa decepção acadêmica veio a decepção na prática. A mesma atmosfera da sociedade socialista dos anos 80 lhe fazia olhar para a Igreja. O jovem Andrey disse: “Se vês que teu querido Partido mente para você no pequeno e no grande, quem sabe tampouco tem razão no que proclama como a questão principal da filosofia: Existe Deus? O que prevalece, a matéria ou a razão?”
Dostoyevskiy e o diabo
Em 1981, com 18 anos, Kuraev leu “Os Irmãos Karamazov” de Dostoevskiy. Ali descobriu o demônio… e também Cristo como Deus, Criador, Salvador e Juíz do dia final.
“Entendi que as tentações oferecidas por Satã a Cristo no deserto foram a escolha mais extrema, exata e global. E por isso aceitei a característica do demônio, espírito de sabedoria e maldade sobre-humanas. Então primeiro admiti a existência do demônio. E dali, por lógica, se Cristo pôde rechaçar as tentações, Ele também era de sabedoria sobre-humana, mas também de bondade. Soube que Cristo era Salvador, e minha sensação de vazio interior desapareceu”.
A KGB e os estudantes de ateísmo
Por essas datas foi quando Andrey colaborou com a KGB sem saber. “A nós, os estudantes especializados em ateísmo, o diretor da cátedra nos disse que o Comitê dos Jovens Comunistas de Moscou estava realizando uma investigação sociológica sobre a religiosidade juvenil.
Pediam-nos para fazer o trabalho de campo em forma de observação direta: visitar as igrejas moscovitas cada domingo e depois preencher os questionários. Tínhamos que indicar o nome do sacerdote, o conteúdo de seu sermão (detalhando se se dirigia especificamente à juventude, se citava só a Bíblia e os Padres da Igreja ou também a imprensa e literatura contemporâneas, chamasse o povo, etc.).
Também tínhamos que indicar, a olho, o número de fiéis, quantos jovens tinha e se reconhecíamos alguém, indicá-lo, mas sem especificar os nomes, o que já seria uma delação aberta”, explicou anos depois Kuraev.
“Eu não era capaz nem de distinguir a leitura do Evangelho do sermão e quando tentei perguntar aos fiéis, as pessoas me trataram com má vontade. Preferiam não dar nenhuma informação a um desconhecido curioso. Os sermões não me impressionaram. Neles, como em minhas informações, não havia nada de política. Mas me dediquei a falsificar as cifras descaradamente. Para importunar o poder soviético, eu aumentava o número de fiéis, sobretudo dos jovens. Indiquei que os sacerdotes combinavam perfeitamente o conhecimento da patrística com a cultura clássica e contemporânea. Assim acreditava que ajudava a Igreja… Passado um ano, me dei conta que era justamente o contrário. Que para o poder o fato de ter fiéis jovens em um templo era um sinal para ir aplicar suas medidas de persuasão aos sacerdotes demasiado ativos”.
Na aula de Incompatibilidade da Ciência e da Fé
Andrey decidiu batizar-se, e o fez num templo ortodoxo mais longe de sua casa e da universidade, para evitar que alguém lhe reconhecesse e denunciasse. Se soubessem na universidade, na carreira de Ateísmo Científico, lhe expulsariam e seus pais teriam problemas. Isso lhe assustava. Mas na cerimônia, enquanto era benzido com água batismal, ouviu “não com o ouvido mas com o coração” umas palavras: “O Senhor é minha luz e minha salvação, a quem temerei?”. E deixou de tremer.
Ao sair do batismo, foi diretamente para a universidade, chegou na terceira aula do dia. Era um curso de “Incompatibilidade da ciência natural contemporânea e a religião”. O professor recitava com uma voz monótona sua palestra para um grupinho de estudantes. Andrey não podia controlar seu sorriso de felicidade. Como aos enamorados, se notava em seu rosto. No final o professor não pôde mais: “Kuraev, a que se deve seu riso durante a aula?” Andrey imaginou que se contasse a causa de sua alegria, seu batismo clandestino, imaginou a reação do professor e por pouco explodiu em gargalhadas.
Quando teus pais te pegam …
Para poder ir à igreja, dizia aos seus pais que ia à discoteca. Compreendia que a verdade lhes seria dolorosa porque sabiam melhor que seu filho como sua conversão iria destroçar sua carreira.
Os pais souberam tudo de surpresa. Um dia regressaram para casa demasiado cedo e encontraram um livrinho de orações e um par de ícones de papel que Andrey não teve tempo para esconder. Houve lágrimas, explicações. O que preocupava de verdade os pais era o futuro de trabalho de seu filho. Ao ver que não pretendia deixar a universidade para ir ao deserto, se tranquilizaram. E, de fato, um par de dias depois, seu padre disse a Andrey: “Sabes?, no final das contas estou contente de que te tenhas te batizado… Agora tens em tuas mãos a chave de toda a cultura européia”.
Surpresas debaixo do sistema
O jovem Kuraev terminou sua tese de fim de carreira, pensando que ninguém a leria detidamente. Parece que se deixou levar demasiado. Seu diretor acadêmico lhe chamou e lhe repreendeu: “Em vez de uma tese de ateísmo científico isto parece um tratado carismático!” O estudante replicou: “Porém não terei mais tempo para reescrevê-lo, agora não posso! Com a Semana Santa…oops…!” Tinha falado demais. Mais o professor não moveu nem uma sobrancelha: “Eu na sua idade tinha tempo para tudo: para o diploma e para o templo!”
Passados dois anos, Andrey anunciou aos seus pais seu desejo de ingressar no seminário ortodoxo. Mais lágrimas. Então, os pais quiseram levar seu filho para falar com seu mestre de literatura, alguém muito respeitado e querido por Andrey. E assim, depois de algo de conversa intranscendente, a mãe disse: “Você sabe?, temos um problema. Andrey quer ingressar no seminário. O que lhe pode aconselhar?”
O professor esteve um tempo pensativo.
“O que posso te dizer, Andrey?”, respondeu então. “Que Deus te ajude a fazer aquilo com que eu sonhei toda minha vida e não me atrevi a fazer!”
Perseguição ao seminarista e sua família
Assim que Andrey levou seus documentos ao seminário, pedindo para ingressar, nada mais para entregar, a seu pai lhe “pediram” para deixar seu cargo na Academia de Ciências. As autoridades bloquearam também o acesso de seu pai a um trabalho importante na UNESCO. E a Academia de Ciências pressionou ao Ministério de Defesa para que chamassem o jovem para realizar o serviço militar para afastá-lo do seminário.
Mas aqui se deu um dos estranhos paradoxos do mundo soviético. Na URSS, os licenciados universitários automaticamente se consideravam tenentes ao entrar no Exército, e se dava um cargo segundo sua especialidade. A um licenciado em Ateísmo Científico tocava ser tenente comissário político! Alguém no Exército decidiu que não queriam ter um seminarista como comissário político e ninguém lhe chamou às fileiras.
A KGB e os seminaristas
Haviam passado só dois dias desde que levou seus documentos ao seminário, quando um agente da KGB lhe fez uma visita. Primeiro tentaram dissuadir-lhe de ingressar no seminário. Como não o conseguissem, uma vez dentro tentaram convertê-lo em informante. O mesmo faziam com todos seus companheiros de curso, que esse ano eram quase todos universitários e intelectuais. Daquela promoção saíram quatro dos atuais bispos ortodoxos. Às vezes os agentes esperavam os seminaristas descaradamente na saída, os levavam a lugares afastados: em um hotel próximo, no registro civil municipal, no museu do monastério…ali havia um quarto para “trabalhar” com os monges que não saíam fora.
“À princípio não te pediam nada. Conversavam. Domesticavam-te, te faziam perguntas sem importância. Depois tiravam fotos de algum companheiro do seminário perguntando quem era. Certamente que o sabiam, mas o importante era que tu lhes dissesses algo, qualquer bobagem. Eu conto porque não estou seguro de que não vá repetir-se”, recorda hoje Kuraev.
“É importante que as pessoas da igreja que passaram por aquilo contem como os kagebistas trabalham com a pessoas e como é possível opor-se. Não se pode agora dizer que todos os sacerdotes colaboravam com a KGB. Se houve algum pecado na consciência da hierarquia, é problema seu, Só Cristo está sem pecado. Tampouco são culpados os sacerdotes que não traíram a ninguém. Se agora as pessoas dessem as costas a esses sacerdotes, seria um triunfo póstumo da KGB”.
Filósofo de prestígio e missionário popular
Hoje, o proto-diácono ortodoxo Andrey Kuraev (http://kuraev.ru) é o personagem mais jovem que figura no”Dicionário de Filosofia Russa dos séculos XIX-XX”. E foi o mais jovem (aos 35 anos) professor de teologia ortodoxa na história da Rússia. Ainda não se considera teólogo, mas sim um jornalista ortodoxo e missionário. É autor de vários livros e centenas de publicações de caráter divulgador. Participa de programas de televisão e rádio. Dá palestras, conferências e cursos por toda a geografia russa e seu portal de missão ortodoxa na Internet reúne até 1.700 pessoas simultaneamente e é toda uma referência para a evangelização no país. Não está mal para um licenciado em Ateísmo Científico.
E o que aconteceu com o menino que sonhava com o comunismo e sua abundância? “Já não busco soldadinhos de chumbo. Mas respeito ao que de verdade necessito hoje, sim, meu sonho comunista se cumpriu”. E em vez de soldadinhos? “Uns presentes extraordinários: o dom da oração, do amor, sabedoria, pureza. Deus os oferece grátis. Só tens que colher.”

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