Por Ricardo Dip, colunista convidado
1. Tem-se imposto, por estes dias, em várias dioceses brasileiras a vedação do recebimento da Sagrada Forma sobre a língua, sendo certo que aos Bispos diocesanos compete “dar normas obrigatórias para todos em matéria litúrgica” (§ 4º do cânon 838 do Código de Direito Canônico).
Tendo em conta o caráter público das ações litúrgicas (§ 1º do cânon 837 desse Código) −ações essas que constituem exercício atualizado da função sacerdotal de Nosso Senhor Jesus Cristo (§ 1º do cânon 834)−, compete à Sé Apostólica “ordenar a sagrada liturgia da Igreja universal” e “vigiar para que as normas litúrgicas se cumpram fielmente em toda parte” (§ 2º do cânon 838).
Dessa maneira, a potestade dos Bispos diocesanos quanto ao Direito litúrgico é apenas integrativa e complementar, exercitando-se intra limites suae competentiae −dentro nos limites de sua competência (§ 4º do cânon 838), sob a autoridade do Sumo Pontífice (§ 2º do cânon 381) e da disciplina comum a toda a Igreja (§ 1º do cânon 392).
Impõe-se mesmo aos Bispos diocesanos a relevante missão de
“vigiar para que não se introduzam abusos na disciplina eclesiástica, especialmente acerca do ministério da palavra, da celebração dos sacramentos e sacramentos, do culto a Deus e dos Santos e da administração dos bens” (§ 2º do cânon 392).
Vale dizer que a Autoridade episcopal é titular de uma potestade normativa subordinada às leis universais expedidas pela Sé Apostólica.
Havendo leis gerais para a administração e recepção lícita dos sacramentos (cânon 841), não compete aos Bispos diocesanos, com inovação disciplinária, divorciar-se da regulativa universal.
2. Deu-se o caso de que a Sé Apostólica se devotou muito incisivamente ao Direito litúrgico do rito romano e, entre outras regras −no exercício de sua competência originária e primacial−, a Sé Romana editou a Instrução Redepmtionis Sacramentum, da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, lei geral acerca da administração e recepção da Sagrada Forma, em que se lê:
“Todo fiel tem sempre direito a escolher se deseja receber a sagrada Comunhão na boca ou se, o que vai comungar, quer receber na mão o Sacramento” (nº 92; vid. ainda Missale Romanum, Institutio Generalis, nº 161).
Acrescente-se que, em um caso concreto, a mesma referida Congregação, em resposta a um católico da Grã-Bretanha, cuja diocese restringira a comunhão na língua por preocupações relacionadas à epidemia do vírus Influenza A –subtipo H1N1, assim decidiu:
“Este Dicastério observa que sua Instrução Redemptionis Sacramentum (25 de março de 2004) claramente determina que “todo fiel tem sempre direito a escolher se deseja receber a sagrada Comunhão na língua” (n; 92), nem é lícito negar a Sagrada Comunhão a qualquer dos fiéis de Cristo que não estão impedidos pelo direito de receber a Sagrada Eucaristia (cf. n. 91)
A Congregação lhe agradece por trazer esta importante matéria à sua atenção. Esteja assegurado que os apropriados contatos serão feitos.”
Manifesto, pois, é que, por melhores sejam as intenções episcopais, não podem os Bispos diocesanos apartar-se da normativa geral da Igreja por meio de leis locais que discriminem o direito de escolha dos fiéis quanto a um dos aludidos modos de recepção da Santa Forma.
3. Que fazer?
Esse é o problema dos que almejam exercitar seu direito de recepção da Sagrada Forma sobre a língua e, muita vez bem mais que isso, dos que entendem o conteúdo profundo que se sumaria com o aforismo lex orandi, lex credendi.
Tem-se a tentação, na experiência cotidiana de todos nós, de simplificar as coisas: “diz-me como comungas e te direis quem és”.
Há, contudo, hoje um excesso de participação laica na Igreja, propiciatória de uma ruptura da ordem hierárquica, e um explicável inconformismo com doutrinas e, sobretudo, práticas heretizantes que, hélas!, alguma vez vêm professadas pela mesma Hierarquia. Mas qual de nós acusará probamente que o só fato da negativa da administração da Sagrada Forma sobre a língua implica justificada recusa rotunda da autoridade episcopal?
Não corramos o risco, quando menos por agora prematuro, de incorrer em sedição. Qual o caminho razoável que se exige do leigo?
O decoro, a cortesia, o respeito etc. ressonam a caridade católica e são marca do caráter do cavaleiro cristão. Não está bem que faltemos a isso, se contamos com boas armaduras e educadas e sólidas e razoáveis para um Bom Combate. Nunca está demais repetir isto: o coração e a língua que desejam receber a Sagrada Forma não podem ser os mesmos a que faltem comedimento, pudor, honradez.
Pois que de um Bispo diocesano, mediante um primeiro e leal diálogo (como gostam hoje desta palavrinha!), não se convencer em alterar seu decreto proibitivo da recepção sacramental sobre a língua, os leigos católicos podem valer-se de meios canônicos regulares:
submetendo os fatos à Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, ora sob a Presidência do Cardeal Dom Antonio Cañizares Llovera (Palazzo delle Congregazioni -Piazza Pio XII, 10 -00120 -Città del Vaticano -Santa Sede -Fax: 06-6969-3499 -e-mail’s: cultidiv@ccdds.va e vpr-sacramenti@ccdds.va), bem como à apreciação do Núncio Apostólico no Brasil, Dom Giovanni D’Aniello (Nunciatura Apostólica – Av. das Nações, Quadra 801 Lt. 01/ CEP 70401-900 -Brasília -DF -CEP 70359-916 -Fax: (61) 3224 – 9365 e–mail: nunapost@solar.com.br).
4. Permitam-me um pequeno acréscimo.
Essa regra proibitiva de que estamos a tratar, a que veda o recebimento da Santa Hóstia sobre a língua, tem seu declarado motivo (nota bene: não uso aqui o termo “pretexto”) em que se proteja a saúde pública ante o risco de contaminação pelo vírus Influenza A –subtipo H1N1.
É, pois, a defesa do bem da vida humana o que se põe à raiz expressiva dessa proibição.
Mas por aí se enveredam interpelações gráficas.
Assim, para considerarmos alguns poucos exemplos, a recolha da espórtula durante a Missa não será tão ou até mais propícia à contaminação viral de que se receia? Aqueles folhetos −que havemos de ler sempre com olhos cristãmente precavidos−, aqueles folhetos com textos litúrgicos nem sempre de bons modais, não serão eles veículos também possivelmente infectantes? Um pouco adiante: se a preocupação central dessa proibição é com a vida humana, como insistir em que há pecado no uso de preservativos por infeccionados de Sida?
5. É muito conhecida −e um tanto imprudentemente exalçada− uma passagem do poeta sevilhano Antonio Machado que diz “Por mucho que valga el hombre, nunca tendrá valor más alto que el de ser hombre”.
Ora, esse apotegma é verdadeiro no plano cosmológico e ontológico, ou seja, quando consideramos o homem no conjunto das coisas criadas e em seu ser imago Dei.
Mas a sentença de Antonio Machado é perigosamente falsa no domínio moral. Valor mais alto do que ser homem é o de o homem ser justo, é o de o homem ser santo, de modo que ser justo e santo vale mais, moralmente, do que ser simplesmente homem, porque ser apenas homem implica participar da espécie mesma que tem heróis e mártires, mas tem também ladrões e homicidas e hereges e apóstatas (aqui peço licença para reportar-me a um imperdível estudo de Leopoldo Eulogio Palacios, El humanismo del bien congénito).
Aí se põe um aspecto importante de nosso problema: a vida humana terrena é um bem valiosíssimo, mas é um bem finito e, como tal, infinitamente menos valioso que o Supremo Nosso Bem. Não se pode exagerar o valor da vida humana “à custa do respeito que se deve a Deus” (Palacios).
Como entenderíamos o martírio −e agora temos bem à nossa vista o do Padre François Murad−, se a vida humana peregrina fosse um bem superior à santidade?
O grau de respeito com que devemos aproximar-nos da Sagrada Forma é consequente de um dado resultante da Fé: cremos na Presença Real?
Nenhum comentário:
Postar um comentário